Muitas vezes o movimento libertário tem-se questionado (se calhar num acto de autocomplacência): “por que é que o anarquismo continua a fazer sentido nos dias de hoje?” Isto com o objectivo de reafirmar que principios de base, como “a propriedade é um roubo”, têm a mesma validez e seguem de igual forma indispensáveis como quando foram descritos ou nomeados pela primeira vez, e até antes disto acontecer. Toda a esquerda, na realidade, tem levantado esta questão, ou a tem formulado com fins divulgativos, o que derivou especialmente entre os anos 60-70 numa reinterpretaçao dos conceitos em volta da revolução e a luta social. Da Primavera de Praga aos Black Panther, os movimentos revolucionários viraram o olhar para um terceiro-mundo que se autoquestionava… Continuariam Marx e Lenin a fazer sentido “nos dias de hoje”, X/X/197X, numa fazenda na periferia de Hanói?...
Com isto não quero pôr em dúvida se a guerra do Vietnam se trataria ou não uma verdadeira revolução, ou se o intelectualismo universitário que apoiara o Vietcongue ou a Revolução Cubana não resultaria hegemónico para toda uma geraçao de filósofos, politólogos e militantes ocidentais; o problema está na viagem de ida e volta de uma teoria eurocentrista, de Marx a Mao e de Mao a Paris de 1968. Nesta viagem se produz, como já mencionei antes, uma reinterpretação do Marxismo-Leninismo, reinventando categorias dialéticas (do proletariado ao campesinato, do Estado soberano industrializado ao Estado “soberano de facto-colonial de iure”) e carregando-as de significados que depois, aplicados a um tecido produtivo completamente diferente, vêm-se forçadas a mudar de significado mais uma vez. O receio para com a classe operária europeia, por exemplo, permitiu aos estudantes de classe média, intelectuais de esquerda, entrarem no jogo. Estas gerações, “filhas da Social-Democracia”, eram de facto as mais influenciadas pela heterodoxia do Che Guevara, Castro, Allende ou Ho Chi Minh; onde não existia um proletariado forte, havia um campesinato cujas prácticas sociais tinham muito de colectivistas, em muitos casos. Na França de 60, campesinato e proletariado ocuparam o mesmo lugar, e o resto do espaço foi preenchido com a contra-cultura, os movimientos estudiantis e a popularizaçao da política (utilização de elementos simbólicos relacionados directamente com a política dentro de marcos comerciais, lúdicos ou de “cultura popular”).
O nexo que permitiu naquela época e que permite agora estes eclectismos entre correntes filosóficas, políticas e artísticas, então, termina por ser a verdadeira teoria triunfante e hegemónica do séc. XX: o Capitalismo. Parece que às vezes nos esquecemos que o Capitalismo é o único sistema sobre o qual não se põe o problema de ser ou não anacrónico, e isto certifica a força com que as relações de poder dentro da cultura predominante (ocidental) foram construindo o sistema económico. O Capitalismo engloba TUDO dentro de si. Em sociedades não industrializadas, o sistema adapta-se organicamente a partir de umas prácticas sociais já assumidas pela sociedade (Colonialismo). Ignorando este factor é impossível compreender a existência do Neoliberalismo global. O fenómeno da crise, por exemplo, é inerente ao ponto de ser preciso, necessário. Se calhar o problema da pergunta inicial será tomar por certo que os “principios de base” sejam Proudhon, Bakunin, as colectivizações espanholas de 36-39 (tendo resultado num fracasso, aceitemo-lo)… enquanto que nas favelas do Brasil, entre os Índios do Perú ou mesmo na selva Lacandona se têm vindo a construir hegemonias desde prácticas sociais inerentes a povos duplamente colonizados, aos quais não temos nada para ensinar, pois aqueles espaços baseados no apoio mútuo são os que realmente resistem ao Capitalismo: “Onde, como, e porquê são esses espaços tão similares a várias conductas libertárias por todo o mundo?” Talvez mudando a pergunta encontraremos uma resposta fora do sectarismo e da endogamia que têm desviado a atenção de muitos companheiros ao longo dos últimos anos.
Jorge Municio Corcho - SOV do Porto